Este caso suscita uma nova discussão no nosso blog: resposta imunológica e virológica discordantes. O que fazer diante deste dilema? O que podemos propor?
Caso:
Homem, 30 anos, nat do Rio de Janeiro, nível de instrução superior, boas condições sócio-econômicas.
Há +/- 4 anos iniciou quadro de infeções cutâneas de repetição e vários tratamentos com antibióticos foram feitos. Procurou imunologista para tratamento, mas as recidivas frequentes continuaram. Mudou de médico que então solicitou teste a-HIV, que foi positivo.
Procurou o serviço público para avaliação pela infectologia.
CD4 > 600 céls/mm3 e PCR HIV <50000/mm3.
Evoluiu c/ abscessos subcutâneos, predominantemente na região cervical de difícil tratamento.
Biópsia de um nódulo na região cervical anterior esquerda revelou Estaphilococos sp. e não era linfonodo. Foi tratado com Cefalexina com resolutividade.
Dois meses depois novos exames evidenciaram acentuado comprometimento imunológico, com CD4 em torno de 200 células/mm3.
Iniciado o primeiro esquema ARV com AZT + 3TC + EFV, com o qual atingiu supressão virológica sustentada até hoje. Em contrapartida, não obteve êxito quanto à recuperação imune.
Nesses 4 anos de tratamento ARV, apesar de CD4 sempre em torno de 50 cél/mm3, este paciente NUNCA apresentou nenhuma infecção oportunista nem qualquer outra manifestação clínica comum aos imunodeprimidos.
Mantém as quimioprofilaxias primárias(SMX-TMP + Azitromicina).
Já fez INH -> 6 meses (tb inativa - RX Tórax).
Sua única queixa é fadiga crônica. Não apresenta anemia e possui marcadores das hepatites são não reagentes e checados periodicamente.
Há 1 ano atrás foi tratado de amebíase intestinal com negativação do parasitológico e normalização das evacuações, anteriormente diarreicas.
Seu peso é monitorado mensalmente e não há emagrecimento.
Após início da TARV não apresentou mais as infecções cutâneas e está estabilizado clinicamente, porém, admite que fica bem triste com a sua doença e não faz planos para o futuro. Tem parceiro fixo, também infectado pelo HIV. Passeia com o parceiro e alguns amigos de vez em quando. Ele recusa psicoterapia, oferecida sistemáticamente. Reside c/ os pais e está em benefício pelo INSS desde a constatação de depressão imunológica.
CONFORME COMBINAMOS, UMA PESSOA FOI A PRIMEIRA DEBATEDORA. RECEBEU O CASO COM ANTECEDÊNCIA E COMENTOU. OS 3 COMETÁRIOS À SEGUIR, DIVIDIDOS DEVIDO A LIMITAÇÕES DE CARACTERES, FORAM FEITOS PELO MÁRCIO FERNANDES.
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ResponderExcluirParte 1-Estudos
Este caso é bastante interessante, intrigante e ilustrativo, por vários motivos:
• Até então, todos temos conhecimento de alguns relatos de casos ou série de casos (inclusive em nossas clínicas públicas/privadas) muito parecidos com o caso apresentado, mas não tínhamos nenhum respaldo científico baseado em uma grande metanálise como a citada na bibliografia [1], para termos um ponto de partida quanto à conduta de suspensão de profilaxia primária – no caso para PCP/PJP – em pacientes com contagem de CD4 pouco abaixo de 200/mm³. Vale ressaltar que toda metanálise também tem suas limitações metodológicas, como o próprio artigo menciona, mas conduzir um estudo randomizado e controlado de suspensão de profilaxia na época atual esbarraria em questões éticas sérias;
• Estudos recentes vêm mostrando que a imunodepressão crônica em pacientes tratados com HAART e em sucesso virológico, embora muitas vezes os coloque numa faixa dita ‘segura’ para a ocorrência de infecções oportunistas (IO), não os protege contra outras doenças não-definidoras, tendo como principal exemplo algumas neoplasias. Com isso, reacendeu-se a questão de qual o melhor momento de início de TARV e aumentou-nos a preocupação do que fazer com aqueles pacientes com resposta virológica (RV) e imunológica (RI) discordantes, ou seja, RV+/RI- ou RV-/RI+;
• Por fim, é importante lembrarmos que a metanálise citada nesta discussão refere-se apenas à suspensão de profilaxia primária para PCP/PJP, mas não dispomos – até onde eu saiba - de nenhuma outra publicação semelhante abordando esta questão, com referência às outras IO, como a neurotoxoplasmose e principalmente as infecções fúngicas disseminadas, estas de difícil tratamento e cujas taxas de cura estão fortemente relacionadas ao sucesso imunológico da TARV, ou seja, ganho de células CD4+.
Parte 2- analisando o caso
ResponderExcluira) Trata-se de um paciente jovem, com uma primeira contagem de CD4 muito boa (600/mm³) e uma carga viral inicial < 50.000 cp/ml, que evoluiu rapidamente (2 meses) com queda imunológica próxima de 200 cél/mm³, quando então iniciou HAART com AZT/3TC + EFZ, esquema este em uso até hoje (há 4 anos), com sucesso virológico e resposta imunológica discordante (RV+/RI-, CD4 = 50/mm³). Em artigo publicado por Tuboi et al [2], em colaboração com o grupo ART-LINC, numa coorte de pacientes acompanhados entre 1996 e 2004, na análise aos 6 meses após início de HAART, quando comparado aos respondedores completos (RV+/RI+), os pacientes que tiveram apenas resposta virológica (RV+/RI-) como o caso em questão eram mais velhos (> 50 anos), tinham uma contagem basal de CD4 mais elevada (> 99 cel/mm³), uma CV pré-tratamento mais baixa (< 100.000 cp/ml) e eram mais propensos a terem recebido um primeiro esquema HAART ‘não padronizado’ (leia-se triplo NRTI ou qualquer outro regime contendo um mínimo de 3 drogas, que não NNRTI ou IP); por outro lado, aqueles que obtiveram apenas resposta imunológica satisfatória (RV-/RI+) eram mais jovens, tinham uma contagem basal de CD4 mais baixa, uma CV pré-tratamento mais elevada e eram mais propensos a terem recebido um primeiro esquema HAART contendo um inibidor de protease (incluindo IP-r). Este segundo achado confere com o do estudo ACTG 5142 (LPV/r vs EFX vs LPV/r + EFZ), que mostrou uma tendência de maior ganho de CD4 após 96 semanas de início de HAART no grupo LPV/r, em comparação ao grupo EFZ (sem adição de LPV/r). Já com relação ao que ocorre antes do início de HAART, outros estudos mostraram que quando a queda de CD4 é gradual ao longo de anos, a RI após início de HAART tende a ser mais lenta e incompleta, apesar de uma RV satisfatória, pois o dano linfóide (timo, intestino) ao longo desse tempo é devastador e irreversível, com biópsia de linfonodos mostrando fibrose extensa e deformidade de toda sua arquitetura, traduzindo em perda parcial/total de sua função; ao contrário, quando a queda de CD4 se dá de forma rápida, o início precoce de HAART é capaz de reverter satisfatoriamente o dano imunológico, atingindo níveis de CD4 próximos ou dentro da faixa dita normal [3]. O curioso neste caso clínico em questão é que embora o paciente tenha apresentado uma queda rápida de seu CD4 (600/mm³ para algo em torno de 200/mm³ em 2 meses), o início de HAART não foi capaz de torná-lo um respondedor completo, mas sim um RV+/RI-, apesar da idade jovem, em contradição com os achados do ART-LINC;
b) Numa excelente revisão de Schechter e Tuboi [4] sobre resposta discordante (imunológica e virológica) à terapia antirretroviral, múltiplos fatores de risco possíveis poderiam estar envolvidos na gênese deste paradoxo, a saber: variabilidade genética do indivíduo (ex. expressão aumentada da glicoproteína-P pelo gene MDR1, com diminuição dos níveis intracelulares dos IP), coinfecção por HIV-2, coinfecção por HTLV-1 (associado com RI subótima, apesar de RV satisfatória), toxicidade medicamentosa (ex. interação TDF/ddI, com ddI dose-dependente), uso de AZT e/ou ddI no esquema ARV (podem causar leucopenia), assim como outras drogas mielotóxicas (destaque para o SMX-TMP, que o paciente faz uso), além de fatores intrínsecos do próprio HIV.
Parte 3- sugestões e bibliografia
ResponderExcluirO que fazer então com este paciente?
Como trata-se de um paciente com contagem de CD4 em torno de 50 cél/mm³, apesar de uma resposta virológica sustentada por 4 anos de esquema único, não creio que seria factível a suspensão das profilaxias. Vale ressaltar que abaixo de 100 cél/mm³, o risco de reativação de neurotoxoplasmose aumenta em muito (não conheço a sorologia para Toxo deste paciente) e embora o SMX-TMP esteja autorizado para profilaxia primária neste caso, não é a melhor droga (ruim com, pior sem...). A Pentamidina (atualmente indisponível no mercado), inalatória ou até mesmo venosa, seria uma opção ao SMX/TMP, mas não confere proteção contra a Toxoplasmose. Com relação à Azitromicina, embora a prevalência de MAC documentada em nosso meio seja baixa (ou subnotificada), se o paciente tolera a dose semanal sem grandes problemas, não vejo nenhum motivo para suspendê-la no cenário atual.
Uma alternativa possível seria a de substituir o AZT pelo TDF, se as condições ‘renais’ do paciente permitirem. No entanto, se este paciente não apresenta leucopenia ao hemograma, não creio que a suspensão do AZT trará grandes benefícios. Uma outra possibilidade, embora questionável, seria a de substituir o EFZ por um IP-r, posto que estudos mostraram uma tendência (sem p significativo) ao maior ganho de CD4 com esquemas iniciais contendo IP/IP-r (vide acima). Ainda, os dados de 48 semanas dos estudos STARTMRK 1 e 2 [5], que compararam Raltegravir (RAL) e EFZ em esquemas iniciais, tendo como ‘backbone’ TDF/FTC, mostraram um ganho maior de células CD4 no braço do RAL, mas não há dados que demonstrem significado clínico para tal diferença (Obs: o RAL só está liberado no Brasil para compor esquemas de resgate e não esquemas iniciais).
Por fim, um estudo controlado mostrou que a administração concomitante de GH humano recombinante pode ser benéfico em melhorar a RI em pacientes cronicamente infectados [6].
Resumindo, esta questão ainda é pautada em resultados bastante preliminares e devemos avaliar cada caso individualmente. Vale lembrar que os pacientes que suspenderam a profilaxia para PCP/PJP na metanálise descrita tinham contagem de CD4 próximo de 200/mm³ (101 – 200 cel/mm³), o que é uma situação bem diferente do paciente em questão. Se o fato dele apresentar CV suprimida de forma sustentada o coloca sob baixo risco para IO, a despeito do uso das profilaxias primárias, ninguém sabe... Mas não creio que com o conhecimento que temos até o momento estaríamos autorizados a suspendê-las.
Bibliografia:
1) The Opportunistic Infections Project Team of the COHERE. Is It Safe to Discontinue Primary Pneumocystis jiroveci Pneumonia Prophylaxis in Patients with Virologically Suppressed HIV Infection and a CD4 Cell Count < 200 Cells/uL? Clin Infect Dis. 2010;51:611-619 (1 September).
2) Tuboi SH, Brinkhof MWG, Egger M et al. Discordant Responses to Potent Antiretroviral Treatment in Previously Naïve HIV-1 Infected Adults Initiating Treatment in Resource-Constrained Countries – The ART-LINC Collaboration. J Acquir Immune Defic Syndr. 2007;45(1):52-59 (1 May).
3) Renaud M, Katlama C, Mallet A et al. Determinats of Paradoxical CD4 Cell Reconstitution after Protease Inhibitor-Containing Antiretroviral Regimen. AIDS 1999; 13:669-76.
4) Schechter M, Tuboi SH. Discordant Immunological and Virological Responses to Antiretroviral Therapy. J Antimicr Chemother 2006 (Advanced Access published July 19, 2006).
5) http://www.imedoptions.com/HIV/Management%20Series/Integrase%20Inhibitors/Expert%20Viewpoints/Expert%20Viewpoint%202.aspx
6) Pires A, Pido-Lopez J, Moyle G et al. Enhanced T-Cell Maturation, Differentiation and Function in HIV-1 Infected Individuals after Growth Hormone and Highly Active Antiretroviral Therapy. Antivir Ther 2004;9:67-75
Márcio Fernandes
GENTE: SÓ PARA CONFIRMAR, EMBORA OS 2 COMENTÁRIOS ANTERIORES A ESTES TENHAM SIDO POSTADOS POR MIM, FORAM ENVIADOS PELO MÁRCIO FERNANDES.
ResponderExcluirMÁRCIO: VOCÊ FOI MUITO LEGAL AO COMENTAR COM TANTO CUIDADO. OBRIGADA PELA REVISÃO.
É até dificil comentar depois do Márcio mas lá vai:
Eu tenho dois pacientes assim, um deles abriu com linfoma B indiferenciado + histoplasmose dissemindada e ficou com CD4 abaixo de 200 de 1995 a 2004 em esquema com EFV e depois disso, sei lá porque passou de 200, mas até hoje não chegou a 300. Só tive coragem de tirar o Bactrim depois que o CD4 passou de 200. O outro é um hemofílico que abriu com esofagite po CMV. Ficou com CD4 abaixo de 100 de 1996 a 1998, fazendo dupla de ITRN. Depois que iniciou IP passou de 100, mas só chegou a 200 em 2001. Por conta própria ele parou o SMZ/TMT antes de ter chegado a 200 de CD4 e nada aconteceu. Depois que eu tirei o AZT e coloquei TDF, o CD4 começou a subir e hoje está com 498.
O que eu te sugiro são ações em uma sequencia para que vc possa avaliar o que melhora;
1- Substituir o AZT por TDF. Esperar para ver o que acontece.
2- Caso não melhore, tirar o EFV e colocar IP/r e ver o que acontece.
3- Eu só retiraria as profilaxias se chegasse na faixa considerada segura.
Se nada disso der certo teremos que esperar por drogas que ajudem a reconstituição imune .
Olá a todos. Como a maioria dos colegas, tenho pacientes assim. Não tenho boa experiência com switch de drogas para tentar elevar o CD4. Em geral não consigo essa melhora.
ResponderExcluirGostaria de fazer 2 comentários adicionais:
1- Não tenho coragem de tirar as profilaxias em quem tem CD4 abaixo de 200. Mas já tive pelo menos 2 pacientes desses que aderiram à TARV mas se recusaram a aderir às profilaxias, e que durante anos nunca tiveram nenhuma infecção oportunista, a despeito da deficiência imunológica grave. Parece que a TARV realmente exerce um efeito protetor (poucos CD4 que funcionam melhor ? será que um dia vamos falar corriqueiramente em fitness de CD4 ?)
2- A única droga que já vi aumentar consideravelmente o CD4 em alguns pacientes foi o T-20. Não sei se outros colegas tiveram a mesma impressão. Notem que são situações diferentes, pois o T-20 sempre entra em equemas de resgate, ou seja, quando há falha virológica também, mas há pacientes que nunca tiveram CD4 acima de 200, no sucesso e na falha virológica, e quando resgatam com esquemas contendo T-20 o CD4 dispara para cima. Onde trabalho tem uma paciente que teve falha virológica com esquema com T-20, mas o ganho de CD4 foi tão grande que a médica assistente está receosa de suspender o T-20, inclusive como determina o Consenso, com medo de perder esse ganho. Também não sabemos se esse ganho de CD4 corresponde a ganho imunológico real, será que essas células são plenamente funcionantes ? Abraços a todos. Paulo Santos
Paulo:
ResponderExcluirAdorei - fitness de CD4. Ele existe mesmo e você é o dono da marca- registra. Um dos casos que comentei como exeomplos neste caso, depois do evento definidor, nunca mais teve nada. Me lembrei de um outro, co-infectado HBV que não chega a 200 de CD4 nem a muque por que os leucócitos dele não chegam a 2000 porque tem um baço MUITO voraz. Nunca teve uma IO. Está comigo há 9 anos.
Quanto ao CD4, acho realmente qe vale a éna tentar tirar o AZT e iniciar TDF. Isso eu já vi acontecer algumas vezes.
Notícias:
ResponderExcluirRecusou a troca de ARV's p/ tentar melhorar imunidade. Ele está estável e fazendo a QP 1aria c/ Bactrin e Azitro.
Obrigada pelo retorno:
ResponderExcluirPermanece a dúvida: este paciente tem leucopenia, anemia? Neste caso, poderia ser efeito tóxico do AZT. Por que razão não aceita a troca dos ARV? Se passasse para TDF o esquema seria até mais confortável, tomado todo uma vez ao dia. Digo isso, é claro, depois de um bom screening de função renal. O uso prolongado de SMZ + TNT tab é causa de toxicidade hematológica e poderia ser uma razão a mais para mantes o CD4 baixo. Mantenho as minhas sugestões anteriores.
Tania, a Dra Ana Carolina Paulo Vicente (q estuda HTLV na Fiocruz), esta realizando PCR para o HIV 2. A gente esquece muito essa possibilidade!
ResponderExcluirCV indetectavel é CV do HIV 1!! Mas a CV do HIV 2 não é realizada e este vírus é resistente a EFV!! Podemos pensar nisso..Bj
Boa sacada, Gustavo. Tá vendo como sua participação é importante? Boa sugestão para o médico assistente. Se você tem o contado dela, coloca no e-mail para o grupo.
ResponderExcluirBJ
Tânia